Saneamento básico em Rondônia, “#nãovolte ao normal”

Em 15 de setembro de 2020, de um lado, Maria das Dores*, 40 anos, mãe de 3 filhos, produz e vende bolos o quanto pode para o sustento da família, ainda mais agora em tempos de crise. Uma tarde de calor, “muito” calor na periferia de Porto Velho, capital de Rondônia (terceira força econômica da região Norte, sic) e “para ajudar” sem água, isso mesmo, sem água há uns 10 dias. Do outro lado, CEOs e executivos do mundo inteiro, de multinacionais, holdings, empresas disruptivas, tecnológicas e inovadoras, nos mais diversos segmentos lançam uma campanha para que o mundo não volte ao normal, #nãovolte desenvolvida pela agência AlmapBBDO**, para a Rede Brasil do Pacto Global, entidade ligada à ONU.

Em tempos de pandemia ou seu recrudescimento, não é difícil perceber tanto para Maria das Dores quanto para os CEOs adeptos do #nãovolte, que o mundo de antes da pandemia não era o ideal. Constatado e agravado ainda mais com o advento da COVID 19, o qual escancarou em todo mundo a desigualdade e o sofrimento humano a custas muitas vezes da própria vida, destacadamente dos mais vulneráveis. O que impele a todos, inclusive ao leitor, a necessidade de se colocar em movimento, em busca de uma realidade melhor, de uma utopia? Vejamos.

Para Carlo Pereira, diretor executivo da Rede Brasil do Pacto Global, espécie de representante máximo do movimento #nãovolte no Brasil – “A crise da Covid19 é uma questão ambiental, que se transformou numa crise sanitária e agora está virando um problema humanitário e econômico. Não podemos voltar a usar a natureza de maneira tão indevida”. Esse uso indevido da natureza entre outras coisas, tem resultado num cenário de saneamento básico precário. Em toda a Porto Velho, apenas 31,8% da população do município apresenta abastecimento de água potável, sendo considerada a pior cidade neste indicador entre as 100 maiores do país e incríveis 4,6% da população da capital recebe atendimento de coleta de esgoto, e 2,6% dos esgotos de Porto Velho são tratados, segundo informado pelo Instituto TrataBrasil em 2019. Não fica difícil visualizar as milhares de anônimas “Maria das Dores”, a enfrentar essa crise humanitária acentuada pela COVID 19, sem água em casa, sem o mínimo de dignidade humana.

De fato, não podemos voltar a esse normal, ao pré COVID 19. O #nãovolte urge então com uma força e universalidade incrível.

Tal movimento se fundamenta em um estudo “Fronteiras Planetárias” conduzido por Dr. Johan Rockström, da Universidade de Estocolmo. O trabalho de Rockström determinou métricas de acompanhamento das fronteiras e um limite para elas. Se ultrapassado, as consequências são desastrosas. Apresenta 9 critérios ambientais que tornam possível a vida humana (Figura 01). Mostra claramente a interferência da humanidade no funcionamento do planeta, em que atualmente 3 fronteiras ou critérios: mudanças climáticas, ciclo de nitrogênio e perda da biodiversidade já se apresentam acima dos limites de segurança. Num primeiro momento emergiu a seguinte conclusão “precisamos salvar o planeta”.

Contudo, o mesmo Dr. Rockström afirma, o planeta pode sobreviver e já sobreviveu aos mais intensos desequilíbrios. Na verdade, “a questão não é salvar o planeta, mas sim, salvar a humanidade”. A pandemia trouxe certa urgência para essa questão. As consequências sanitárias e econômicas do vírus, fruto do desequilíbrio ambiental (animais e humanos convivendo em um ambiente degradado), são apenas uma prévia do que aconteceria caso as fronteiras planetárias colapsem.

Figura 01 – As 9 Fronteiras Planetárias: Mudanças Climáticas , acidificação dos oceanos, destruição da camada de ozônio, fluxos biogeoquímicos (fluxos de nitrogênio e fósforo), uso da água, desmatamento,  perda da biodiversidade, aerossóis (partículas nocivas na atmosfera) e poluição; os itens em vermelho estão acima do limite (Felix Mueller/Wikimedia Commons).

O que fazer?  Quais caminhos podemos tomar? Podemos salvar a humanidade?

O ponto de partida pode ser econômico. “É mais barato cuidar do planeta”, afirma o economista indiano Pavan Sukhdev, presidente do conselho global da ONG WWF e CEO da consultoria GIST Advisory. Olhando para o Brasil, e em extensão a Rondônia, “Nenhum outro país possui um capital natural como o Brasil. É uma verdadeira potência”, afirma Sukhdev. “Esse capital será o grande negócio, daqui para frente. O mundo não precisa de mais produção. Já existem produtos suficientes. O que vai garantir crescimento econômico são os serviços ambientais, a biotecnologia e, especialmente, o capital humano”.

Porém, isso não parece ser suficiente, não é justo e talvez nem seja a solução ainda, ao menos em nossa realidade amazônica, quiçá brasileira… Salvar a humanidade? E as donas “Maria das Dores” em Porto Velho, quem irá salva-las? Qual é a sua verdadeira ou primária necessidade? Se o direito a água não é assegurado, se a exposição aos mais diversos riscos sanitários não é observada, não é cuidada, bem como em outras milhares de famílias pela cidade de Porto Velho, que permanecem vulneráveis a doenças relacionadas ao saneamento inadequado.

Que salvação da humanidade seria essa? Seria algo paradoxal tal como a penetrante afirmação “Tanto mais amo a humanidade em geral, quanto menos amo as pessoas em particular, como indivíduos” de Dostoievski na clássica obra Os Irmãos Karamazov?

Não, não podemos incorrer nessa “reduzida e ineficiente solução”.

Por outro lado, menos ainda parece ser suficiente adotar como ponto de partida o critério econômico, como mencionado pelo próprio Pavan Sukhdev. É importante, mas não o mais importante. Aí entram outras questões tão bem enunciadas e desenvolvidas por exemplo, pelo Papa Francisco na sua Laudato Si. A questão deve passar pela mudança de valores, mudança do próprio homem, da sua relação com o poder, com o conhecimento, com a natureza e a própria relação entre as pessoas, “uma transformação do antropocentrismo desordenado vigente”.

No ápice da perplexidade mundial diante da crise com a pandemia, saltou aos olhos a “incapacidade” de todas as nações, destacadamente as mais desenvolvidas tecnologicamente. Mostrou-se evidente a importância de valores humanos como a confiança, heroísmo, solidariedade, entre outros… Já na Laudato Si, Papa Francisco afirmava, “a consciência da gravidade da crise cultural e ecológica precisa de traduzir-se em novos hábitos” e que “compete à política e às várias associações um esforço de formação das consciências da população”.

Em meio a um cenário de instabilidade em que ainda estamos, soma-se o tumultuado processo eleitoral que o país inteiro esta às portas, e inclui os municípios do estado de Rondônia. Talvez aqui o #nãovolte deva tomar a forma de um compromisso, a valer para os atuais dirigentes municipais (prefeitos e vereadores) e aos que virão. Qual a sua importância e compromisso com o saneamento básico? Há de fato o enfretamento dessa dura realidade como política pública? Lembrando que “Política Pública é o que o governo escolhe fazer ou não fazer“, de acordo com Thomas R. Dye.

O que se deve fazer para culminar de fato em novos hábitos, seja no âmbito pessoal ou do poder público local? Para que #nãovolte a trágica realidade do saneamento básico precário, do descaso ambiental e sanitário para com as nossas cidades.

Por outro lado, a responsabilidade é também coletiva, de cada um, e mais uma vez, a Laudato Si vem contribuir reportando que “a atividade de contemplação é apresentada como capaz de despertar o sentimento de pertencimento que gera o comportamento do zelo, já que a ausência deste sentido, induz atitudes de consumidor, dominador ou explorador de recursos naturais”.

E sim, é possível aliar a ciência à capacidade de maravilhamento do homem pela natureza. Aliás está na gênese do homem fazer ciência. Isso não quer dizer que um antropocentrismo desordenado deva necessariamente ser substituído por um ‘biocentrismo’. Como se fosse possível somente vivermos em dois polos, infeliz marca do nosso tempo.

A questão é olhar, ter no centro a pessoa, a dona Maria das Dores e seus reais problemas. Que o “#nãovolte”contemple o básico, o belo e a dignidade de cada ser humano, de cada cidadão de Porto Velho, de Rondônia e do mundo. Que o saneamento básico em Rondônia, #nãovolte ao normal.

*identidade fictícia

** “#NãoVolte: CEOs lançam campanha para que o mundo não volte ao normal. Para esses líderes empresariais, o mundo de antes da pandemia não era o ideal. Agora, eles querem construir a utopia”. Por Rodrigo Caetano. Reportagem Revista Exame, 11 de setembro de 2020.

Marcelo Melo Barroso

Marcelo Melo Barroso – Vice Presidente – Instituto Abraço. Rondoniense, Professor universitário, Doutor em Hidráulica e Saneamento pela USP-São Carlos e Missionário católico consagrado a Nossa Senhora.
Possui experiência como Analista Ambiental do IBAMA-Rondônia e professor adjunto da Universidade Federal de Rondônia. Atuação como consultor na criação e coordenação do Curso de graduação em Engenharia de Inovação – ISITEC (2013 a 2018). Atualmente professor e consultor em cursos de capacitação em Saneamento Básico, Planejamento e Gestão Urbana, Uso Racional de Água e Sustentabilidade e Inovação.